O “gamer” da década de 20 está estragando as coisas

“Aiiiinnnn, mais um jogo cheio de lacrasssssaum!”, “Ain uma mulher como protagonista!?!?!?”, “Aiiiinnn isso nunca existiu na história!”. Essa são algumas das expressões mais ditas nos últimos tempos por supostos “gamers” ao redor da web nos últimos anos. Acredite.

Para mim é com grande espanto que eu vejo um levante por uma minoria na comunidade gamer que quer ressoar como uma maioria.

E todo esse crédito vem dos perfis, influencers, portais de notícias e “otoriedades” que se colocam no papel de informar ou fomentar discussão visando pura e simplismente uma melhor performance de seus números em acessos, engajamento, publicidade e marketing.

Davy Jones o mago - Influencer

Afinal, onde foi que erramos como comunidade e mercado no qual deixamos de apostar na infinita exploração da nossa criatividade como ser humano e passamos à nos degladiar em toneladas de conceitos e argumentos furados tentando moldar o que não existe e o que, lá nos anos 80, entre os primeiros consoles de mesa e as eras de 4 à 16 bits, já datava como ultrapassado?

Mulher protagonista é novidade?

Lendo algumas manifestações na internet, parece que mulher ser protagonista nos games é uma novidade e com efeito negativo. Mas pergunto: Porque jogar com uma protagonista feminina seria problema? Em meados de 1994, eu como muitos, jogava (o hoje clássico de SNES) Super Metroid.

Naquela época (preciso lembrar que informação era um produto meio escasso e não tão acessível assim pra consumir), as revistas especializadas em games não davam muitos spoliers e no caso deste game, eu só fui descobrir que o protagonista vestido na sua armadura amarela de capacete vermelho, era na verdade “A” protagonista, Samus Aran, após finalizar o game, no qual dependendo em quanto tempo você terminava o game, ela se revelava de uma forma diferente. Existiam 3 finais diferente dos quais terminando à mais de 10 horas, ela não se revelava. Entre 3 e 10 horas, tirava o capacete e em menos de 3 horas, apareceria de bikini.

Samus Aran revelada no fim mais difícil de se atingir em Super Metroid SNES

Alguma preocupação? Não…

Na escola, alguns colegas comentavam sobre isso? Não.

Não era preocupação de ninguém, tendo em vista já ter tido o contato anterior com os jogos da franquia ou o seu primeiro contato com aquele título em específico. Mas calma, aquilo não era uma total novidade quando em 1988, no maravilhoso Super Mario Bros. 2, a gente tinha como opção jogar com diversos personagens da turma de Super Mario Bros., entre eles, a princesa Peach, que era inclusive o melhor personagem para se jogar.

Alguém reclamava que era ruim? Não.

Antes disso, em 1985, a SEGA foi pioneira em trazer aos jogos um protagonismo que não fosse um soldado musculoso, exército de 1 homem só, que pipocava aos montes no cinema e na TV. Estou falando de Ninja Princess, onde a simpática princesa Kurumi botava pra quebrar nos fliperamas e no MSX tempos depois.

Phantasy Star SEGA

Aliás a SEGA bancou essa idéia em diversos títulos que viraram, clássicos absolutos e conquistaram fãs por todo o mundo como Phantasy Star e Alisia Dragoon. Em 1994 a Square Enix (na época Squaresoft), também ofertou um grande RPG de sucesso em que sua protagonista principal era a poderosa e cativante Terra: Final Fantasy VI.

Preciso citar aqui Lara Croft? Acho que ficou claro.

O problema é a Sweet Baby Inc?

Há quem acredite piamente que hoje, todo jogo que propõe abordar temas como inclusão e diversidade sexual é por causa da interferência/trabalho da empresa Sweet Baby Inc. Pra quem ainda não sabe, a Sweet Baby é um estúdio canadense de consultoria e desenvolvimento de narrativas, fundado por ex-devs da Ubisoft.

No geral, ela é uma consultoria contratada pelos estúdios quando eles tem em seus projetos algumas abordagens que gostariam de fazer da melhor forma e não se sentem seguros pela equipe que têm, ou não tem o conhecimento pleno e contraram a consultoria.

O que acontece é que a Sweet Baby é apenas uma contratada, prestadora de serviço e o resultado final fica por conta da aprovação do estúdio que a contratou. Alguns acreditam que a empresa levanta uma bandeira woke no qual aplica em todas as suas consultorias, dado a polêmica envolvendo alguns de seus serviços prestados no jogos como God of War Ragnarök, no qual o personagem Angrboda foi todo contextualizado pela consultoria da mesma.

Sweet Baby Inc

As polêmicas envolvem na verdade um grande recorte de teorias que inciaram-se em 2023 com discussões nos fóruns Kiwi Farms, Reddit r/KotakuInAction, além de um servidor relacionado no Discord. Uma das polêmicas acusava a empresa de ameaçar desenvolvedores na indústria. Alguns videos circularam a internet com declarações de Kim Belair, CEO da Sweet Baby Inc. defendendo a manipulação dos executivos dos estúdios através de ameaças e intimidações.

Espantalho na Comunidade

Após isso a Sweet Baby Inc. virou um grande espantalho na comunidade para todo jogo que sai que contenha uma crítica sobre seus temas. Esse costume está cada vez mais comum pois dessa história toda, pessoas que se dizem gamers, ignorantes, aderiram à postura early adopter ao executar sempre o memso tipo de opinião e comentário, como “mais um fracasso da Sweet Baby”, “se a SBI se meteu, o jogo ficou ruim”, “go woke, go broke”, “quem lacra não lucra” e etc.

Mal se dão ao trabalho de lerem as críticas, entender os pontos principais e o senso comum para saber o que realmente o game pode ofertar de experiência. Esses individuos talvez se comportem assim por esporte, ociosidade ou estupidez. Ou tudo ao mesmo tempo, é provável. Mas este comportamento está estragando o cenário, a indústria de games.

Virjão gamer

E eles são geralmente provocados por gamers de até 30 e poucos anos, em alguns casos de novatos neste meio que tem nos consoles de hoje seu primeiro ou segundo console na vida. Muitos deles nem consomem jogos direito, são embebecidos de preconceito até com games indies e vivem de uma controvérsia em que fazem uma força tremenda pra não reconhecer ou deixar ver a luz do dia.

Redes Sociais

Em alguns grupos de gamers pelas rede sociais, esse comportamento tóxico é execrado pelos mais velhos, impedindo que se alastrem nas discussões, mas vemos que algumas plataformas e marcas levam à sério esse mimimi, colaborando cada vez mais para o extermínio do pensamento crítico.

Reconhecemos sim que no atual cenário da indústria de games há um problema grave sobre criatividade que podemos apontar com a chegada massiva de remakes e remasters não pedidos pela comunidade, bem como as tentativas de oferecer GaaS hoje serem equivocadas.

Infelizmente temos muitos jogos que apenas trocam o tema e a skin e se oferecem como uma nova experiência, mas se resumem à mais do mesmo e há outros que contém histórias rasas, sem força e sem personalidade, fruto de quem errou muito em pensar e repensar idéias.

Yasuke - Naoe

Se Yasuke não pode ser um samurai negro, um macaco não pode ser um rei em forma humana numa obra de fantasia asiática. “Ah Yasuke não era um samurai”. A afirmação de que Yasuke era um samurai, vem de relatos dos jesuítas como Alessandro Valignano e certamente do livro “African Samurai: The True Story of Yasuke, the Legendary Black Warrior od Feudal Japan” de Thomas Lockey que se aprofunda num estudo bibliográfico atrás dos fatos, com muita pesquisa envolvida.

Preto no Branco?

Falando em personalidade, o que acontece hoje com Assassin’s Creed Shadows é um exemplo disso. Alguém me explica, como uma obra ficcional como exatamente é um jogo de videogame, que se baseia em história, mais pra ser pano de fundo para uma realidade paralela, uma fantasia do que um documentário, possa ter sofrido tanto hate por conta de um protagonista como Yasuke.

Não vou entrar aqui em detalhes que reforçam a representação de Yasuke no jogo, mas é certo respeitarmos a inspiração numa obra fictícia.

Assassin’s Creed Shadow não quer levantar discussão sobre o reconhecimento histórico de Yasuke no Japão. Tudo que ele quer é trazer ao fã da saga um novo universo desejado por ele em que personagens interessantes e cheios de personalidade fazem parte da história. Ninguém é obrigado a comprar a idéia e a proposta do jogo, mas também não é dado o direito de desqualificar o mesmo sem antes joga-lo.

God of War teve consultoria Sweet Baby Inc.

Colaborações

Algo interessante sobre este atual momento envolvendo tudo isso até agora refletido é que muitos dos maiores sucessos dos últimos anos tem a colaboração efetiva da Sweet Baby Inc.

Então eu digo que isso muito explica a postura deste novo perfil de “gamer”. O “gamer” da década de 2020 não está aberto à experiência de novas propostas e, deixar que ele dite os rumos da indústria pode fazer com que o processo criativo se limite e seja estrangulado.

Isso está claro no que aconteceu com Concord. O jogo tinha tudo para ser uma boa proposta. Mas foi um apanhado de erros que o tornou um desperdício. Esses erros vieram da leitura errada sobre o que no campo de jogos como serviço se expressavam à época.

Concord partiu de uma época em que uma tendência crescia, mas era uma novidade que ainda não tinha definido se era apenas uma tendência passageira ou se veio pra ficar. Não há nada contra jogos de super heróis, sejam eles totalmente autorais ou claramente inspirados no que já existe, sendo uma “cópia descarada e safada”. Há quem possa discordar justamente influenciado pelo que de fato se dava naquela época em outro mercado de entretenimento.

Concord - Personagens

Mais um GaaS?

O fato é que, se a indústria tivesse ouvido o público em geral, Concord estaria na ativa hoje e poderia ser mais um GaaS tentando seu lugar ao sol ou a nova febre à comandar um nicho. Qualquer gamer sensato sabe que Concord deveria ter sido ofertado gratuitamente e que iria lucrar com a venda de conteúdo dentro dele. Isso funcionou e muito com o até então desconhecido e icógnito The First Descendant.

Não ví nenhuma turminha denegrindo o jogo antes do lançamento e nem tampouco criando hate semanas pós seu lançamento. E olhe que há diversos assuntos questionados acima que transbordam no jogo.

Frustrações através de ataques…

O capítulo mais nebuloso que estamos vivendo recentemente na comunidade são os ataques gratuitos às marcas, estúdios e publishers quando uma novidade ou produto deles desagrada. Vai até mais além, virando richa pessoal para alguns.

Nem tudo são flores. Estamos ainda numa crise em que além de termos estúdios fechando e projetos e jogos sendo cancelados, ainda tentamos entender a interrupção de suporte online para diversos títulos. A indústria como sempre alega custos e nós jogadores tentamos entender sobre eles. “Como funciona” é informação que poucos possuem e sempre levantamos a dúvida quando um mesmo estúdio desliga um servidor e mantém outro.

Isso fez com que declarações nada agradáveis da realidade viessem à serem ditas, como a que fez Philippe Tremblay, o diretor de assinaturas da Ubisoft: “Jogadores não estão confortáveis com o fato de não serem donos dos jogos”.

Philippe Tremblay - Ubisoft

Isso desencadeou a ira sob incompreensão de muitos na comunidade. Tremblay na verdade comentava sobre o costume que temos em comparação com uma visão de futuro em que deveríamos estar acortumados à assinatura de games para consumir, como assim já acontece no cinema e na música, o que até então a indústria considera essa transição mais lenta do que imaginava.

Efeito Negativo

Efeito negativo que recaiu sobre membros da comunidade que expressaram à todo o momento e continuam expressando à empresa em suas rede sociais, repúdio à esse pensamento. Muitos alegam que não comprariam mais jogos da Ubisoft pois não seriam donos deles. Isso acompanhando de uma ação da Ubisoft no mesmo período que fechou os servidores de The Crew (2014) em março do ano passado.

Por conta disso, a publisher francesa está sendo processada por dois jogadores da Califórnia, numa ação coletiva que acusam a Ubisoft de violar as leis de proteção ao consumidor do estado americano e que adquiriram o jogo no meio de seu ciclo de vida presumindo que estariam adquirindo posse do mesmo.

Isso fez com que depois, diversas empresas, incluindo a Ubisoft passassem à declarar nos termos de aquisição de seus jogos que a compra significava uma licença de uso temporário e não a posse do jogo.

Até aqui, jogos no passado tiveram o mesmo destino e ninguém até então havia reclamado, ficando subtendido numa visão geral que o consumidor entende que entre gerações, muitos jogos deixarão de existir. Vida que segue.

Ataques pela Internet

Então através deste fato, em conjunto com o que anteriormente foi discutido, expressa o grande motivo de revolta por parte de alguns que em sua contrapartida resolveram perseguir os estúdios e publishers na suas redes sociais. Diariamente a Ubisoft recebe ataques de usuários nas redes sociais de forma espontânea.

Jordan A. Mun, a protagonista de Intergalactic

Naughty Dog com o trailer de revelação de Intergalactic: The Heretic Prophet, teve que fechar os comentários do video e de algumas publicações nas redes sociais, devido ao visual da personagem, que gerou um intenso impacto na comunidade, refletindo a expetativa e o escrutínio em redor desta nova heroína. A chuva de comentários repudiando uma protagonista mulher era intensa, seguido da mesma reprovação que Kay Vess teve em Star Wars Outlaws.

Nem todo jogo demanda uma protagonista peituda/bunduda e de uniforme colado, virjão!

Jordan A. Mun, a protagonista de Intergalactic, tem clara inspiração no tipo de Ellen Ripley em Alien 3. Só não enxerga quem não tem essa referência. Obviamente esses “gamers” da década de 20 pegaram o bonde andando numa era de guerra de consoles que hoje, quase 10 anos depois, não existe mais. Nenhuma plataforma ou grande estudio tem tempo, dinheiro e equipe o suficiente para lançar 3 ou 4 exclusivos AAA por ano.

Já enfrentamos esta discussão nos últimos anos do qual os jogos estariam cada vez mais caros e levando mais tempo para serem produzidos, conforme as tecnologias aplicadas. Temos claramente um exemplo disto se olharmos a trajetória da Rockstar Games após 2015, no qual ela cancelou a continuidade de diversas franquias suas e focou apenas em Red Dead e GTA.

Custos de Produção

Tudo o que ela lançou após isso, na maioria das vezes foram ports de seus sucessos para as duas últimas gerações, ficando apenas com o desenvolvimento de seus 2 medalhões no qual 1 serve de laboratório para o próximo título do outro. E ao olhar os custos dessas duas produções e o tempo de desenvolvimento…

E parte dos estúdios estão sacando tanto neste exemplo como em muitos outros que é melhor ir pra cima do público com seus novos produtos finalizados e à toda prova. Por que mais um precoce No Man’s Sky ou Cyberpunk 2077 pode sepultar de vez a confiança em todos.

No Man's Sky

Enfim, no vasto e intricado universo dos jogos, onde a criatividade deveria reinar soberana, observamos um fenômeno inquietante: a ascensão de uma mentalidade que se recusa a abraçar a diversidade e a inovação. As vozes que clamam por um retorno a protagonistas estereotipados e narrativas unidimensionais ecoam como um eco distante de um passado que já deveria ter sido superado.

A resistência a personagens femininas e a inclusão de narrativas mais ricas e variadas não apenas empobrece a experiência gamer, mas também revela um medo de mudança que, se não for confrontado, poderá sufocar a própria essência do que significa ser um jogador.

Assim, é necessário que a comunidade gamer, em sua totalidade, reflita melhor sobre os temas, assuntos e idéias que ainda não tocamos e abrace a evolução, permitindo que a criatividade floresça em todas as suas formas, em vez de se aprisionar em velhos paradigmas. E nada disso eu refiro à abraçarmos e aceitarmos todo o tipo de pauta, inclusive à afetada “woke”.

Veja também: As principais inovações introduzidas em cada jogo principal da série Grand Theft Auto (GTA)

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